Água batizada e ter sua trajetória de vida alterada por uma música pop
Ainda tenho muito a aprender
No meio da rua, fui chamada de puta, vagabunda e cachorra, entre outras palavras de baixo calão, por uma paulistana feia, cafona e desconhecida — burra, fracassada e, principalmente, com um sotaque escroto — enquanto eu vestia uma fantasia de Lady Gaga na capa do Joanne, durante a Peruada da USP de 2019.1
Em meio a uma das piores crises depressivas da minha vida, comprei um ingresso para o Popload Festival para realizar um dos únicos desejos que me restavam, decidida de que era ali o fim da puta, vagabunda e cachorra que me construí para ser: assistir não a qualquer show, mas o primeiro show do Cansei de Ser Sexy em São Paulo em mais de meia década. Dois dias antes do meu aniversário de 20 anos, três de março de 20172, fiz um post entitulado “a primeira vez que percebi que sou uma mulher adulta foi quando olhei no espelho e pensei que eu parecia membro do Cansei de Ser Sexy” no blog de crônicas proto-”amiga sinceramente acho tudo” que eu mantinha em segredo.
“Esse dia eu resolvi passar sombra marrom nos olhos (eu nunca uso sombra).3 Depois de ter completado a maquiagem eu me olhei e pensei que eu estava com muita cara de alguém que faria parte do Cansei de Ser Sexy, e me lembro que quando eu era criança eu via os clipes deles na MTV e os achava todos tão adultos. Mal via a hora de ser adulta como eles. Aí, ainda vendo como a sombra tinha me deixado nessa vibe rua-Augusta-em-2006, pensei que alguém de 10 anos me vendo na rua me vê como adulta. Eu não sou mais uma garota. Eu sou uma mulher. Um ser humano maduro, adulto, mas não o suficiente.”
Eu, então, me juntaria a uma amiga que se juntaria a outros amigos e de repente me veria com uma garrafa de água na mão e do nada era Khruangbin e era Tove Lo e era sei lá o que e eu dançava e jogava cabelo pra um lado e pro outro e music is my boyfriend music is my girlfriend. Luisa Lovefoxxx Matsushita com uma camisa do MST diante de um telão gigante com cenas do Lasier Martins tomando choque. Música, música, música demais, e um casal usando uma roupa combinando com os dizeres “quem é moderno aí meu”, e mensagem pros meus pais dizendo que os amo. Água normal. Água anormal. Calor, um calor do caralho, dentro da linha vermelha indo da Barra Funda pra casa onde eu morava na Fradique Coutinho, suando em bicas fedendo a esgoto debaixo de um moletom preto com a pupila do tamanho de uma caixa d’água, decidida de que ia chegar em casa, tomar um banho e escrever.
Nesse dia cheguei em casa, tomei um banho e despretensiosamente escrevi seis músicas em um manuscrito tremido guiado por um violão. Essas músicas viraram um EP, que me deu um único retorno memorável: descendo as escadas da Void do Largo da Batata fui parada por um homem lindo e gigantesco que me encarava com um olhar grande e atencioso. “Eu comprei uma cerveja pra você porque eu gostei do seu EP”, ou algo assim, foi o que ele me disse. Me sentia tão rejeitada por mim mesma que não podia fazer nada a não ser projetar minha tragédia silenciosa em alguém, tão intimidada pela sinceridade do gostar somada à dignidade espiritual, beleza e inteligência de um (tecnicamente) fã, ao ponto de não conseguir nem respondê-lo apropriadamente — mas de alguma forma George me deu um LP do Turn On The Bright Lights que permanece pregado na parede do meu quarto na casa da minha mãe até hoje. Toda vez que olhava para ele, lembrava de que um dia alguém que conheci como meu4 fã se tornou meu ídolo de alguma forma (não acho que seja possível esquecer a primeira vez que alguém gosta de algo que você fez tão gratuita e honestamente).
Me apavorava a ideia de insistir em reciprocar o ato de você-me-deu-o-melhor-álbum-do-mundo-em-vinil e o imaginar me fazia sentir uma minúscula mulher de 170cm diante dos cinquenta e cinco metros de altura moral dele. Meu quarto antigo segue com uma representação vinílica da insegurança que me mantinha no desconforto e no degradante, e me impedia de insistir no que é belo e no que é interessante, e que, bom, só desaparece depois que eu enfio meu dedo mindinho na boca e me olho no espelho, ao menos até gostar do que eu vejo.
Aprendi que me sentir adequada pro Outro depende de me sentir adequada dentro de mim: aprendi que passar vergonha é relativo e que existe muito que, se antes era vergonhoso, hoje deveria ser motivo de orgulho (e gratidão), porque nem todo mundo se permite (ou é permitido) ser livre, enquanto eu sim.
ele é fodão mas eu sei que eu sou também
Entro no Het Sieraad, uma antiga faculdade desativada e transformada em casa de festas, na esquina de dois canais. Meu amigo parte uma Tesla em três (se isso não for descritivo o suficiente, te explico — era laranja, com o logo da Tesla, dividida em três) enquanto os fogos de artifício da Oudejaaravond pipocam e criam uma nuvem de fumaça na cidade inteira. DJs tocam em ambientes diferentes. Tudo é gigantesco, monumental, glorioso. Em algum momento, depois do Tesla bater, o DJ do salão principal pausa a música para fazer uma contagem regressiva: vijf, vier, drie, twee, een, (break musical) Sweet Caroline…
Até hoje não sei se alucinei com isso, mas nunca vi tanta gente branca feliz na minha vida, e eu morei em Laranjeiras durante algumas eleições do PT; era um mar de centenas de neerlandeses alucinados, loiras com vestidos de glitter e seus loiros de camisa de botão branca, eu e meus amigos com taças de champagne, uma união tão emocionante quanto incompreensível dos povos, todos uníssonos cantando a mesma música.5 Por volta das três horas da manhã, decidi ir a pé para a casa de um amigo para beber cuba libre, mascar chiclete, ouvir o Blood Sugar Sex Magik na íntegra e assistir o nascer do sol aninhada em um torso esquálido com a certeza de que eu nunca mais seria a mesma — e nunca fui mesmo.
No caminho, me instalei tão confortavelmente em meu cachecol e no universo ao meu redor que as árvores me viam e era a água do canal que me cheirava; era e amava cada molécula de tudo e de todos, atravessando a neblina que cobre os Países Baixos toda madrugada do dia primeiro de janeiro. Como uma ovelha que explora o mapa no Age of Empires, cruzando a fumaça do desconhecido eu andei e cheguei onde queria estar, então e agora: não fosse eu querer trocar a eternidade por aquela noite provavelmente não estaria aqui, enchendo milhões de frases com todas as cores e milhões de vasos com todas as flores.
Aprendi que ser feliz, pra mim, exige sempre estar dando adeus.
good times never seemed so good
Tédio. Insatisfação, solidão, questionamentos infinitos: serei eu permitida a esboçar um sorriso de novo algum dia?, será que eu devo enfiar uma faca de serra na minha jugular hoje?, seremos nós condenados a uma eternidade trancafiados em casa? Diante de tantas perguntas e nenhuma resposta, em uma terça-feira sem graça de uma vida de merda seguindo a dieta cetogênica, decido optar por um “dólar” (verde, no formato de uma nota de dólar) às 8h45 da manhã e ir ao supermercado Pão de Açúcar comprar queijo de R$ 40, prosciutto, abobrinha e iogurte 0%. 10h. 11h. 12h. Trabalhando, sou tomada por uma vontade irresistível de ouvir Madonna, e ouvindo Madonna me levanto de minha cadeira e começo a dançar ensandecidamente; enfio meu dedo mindinho dessa vez não em minha boca mas em um pote de sombra amarelo neon e, sozinha, danço por horas e horas a fio; danço, danço e danço; esqueço que tenho dois empregos, que estou sozinha, que estou em um relacionamento abusivo, que estou triste, que meu cabelo não vê uma tesoura há oito meses, que meu corpo é o único lugar que posso habitar; danço; abraço meu gato; danço, danço e danço. Esqueço, enfim, de tudo que veio antes e tudo que poderia vir depois. Só existem minhas pernas, meu quadril, meus braços. Esqueço de Hung Up e de Sorry, porque Get Together é melhor.6
Aprendi que amanhã, por mais difícil que pareça de se alcançar, exige de mim apenas sobreviver 24 horas.
I searched my whole life to find a secret and all I did was open up my eyes
Veja bem: tenho 27 anos, a idade do rock.
Gosto de acreditar que sou uma rockstar e que posso morrer a qualquer momento. Carpe diem, me ensinaram na escola e em Sociedade dos Poetas Mortos (a escola de quem sabe de verdade).
Em um porão no meio da Rue de Rivoli, uma das ruas mais hiperpovoadas por turistas e gente safada da capital francesa, celebra-se o dia mundial do orgulho LGBT. Uma festa com os mais LGBTs dos LGBTs estremece madrugada adentro: o DJBT decide dar play em What You Waiting For? da Gwen Stefani. Estou em êxtase.7 Meu abdômen se move automaticamente. Estou longe, estou dançando sem vergonha, estou centenas de amanhãs depois do que um dia pareceu um infinito hoje. Por que eu estou em êxtase?
take a chance cause you might grow
Um dia eu decidi que queria porque queria me mudar e queria me mudar para muito muito longe e eu só ia ser feliz se eu morasse na puta que pariu e, pois bem, cá estou eu na puta que pariu em um porão com escadas escorregadias e aroma de cecê. Desço e subo as escadas sem medo de cair; sem medo de cair? Minha mãe costuma dizer que acha que eu sou muito corajosa, coisa que nunca enxerguei — sempre me achei medrosa e fraca. Mas a cada dia mais que eu vivo longe de tudo e de todos, e a cada movimento que eu faço guiada por meu próprio desejo e controlada pelos limites da minha lógica, acredito mais que existe algo impossivelmente gigantesco que me permite seguir em frente.
Algo — algo que alguns chamariam de Deus, de D’us, de Allah, etc.,; eu não o chamo, espero ser chamada. Tenho consciência de que cada dia mais também é um a menos de vida, mas poderia eu chamar de vida estar confinada ao meu quarto? Se eu não tivesse arriscado tudo para estar nesse porão quente, usando jeans com jeans, aonde eu estaria? Se eu não escolhesse cair enquanto subo e desço os degraus e, no lugar, escolhesse permanecer sempre parada no meio dela vendo o fluxo de quem vai e quem volta, sonhando com a porta de saída — já que a escolha de entrar não foi minha —, quanto da Vida eu teria perdido? Dizer que não me preocupo ou que não me arrependo seria mentir e, naturalmente, me assusta ter que subir, descer e me levantar sozinha.
Aprendi, finalmente, que escorregar na escada é normal; que o importante não é a queda, e sim a aterrissagem; aprendi que é normal mastigar e é mais normal ainda engolir. São muitas, quase infinitas, as coisas que achava que nasci sabendo mas que nem sequer havia aprendido; a expectativa de aprender mais amanhã é suficiente para poder ir dormir em paz hoje, pelo menos.
O mais humilhante foi, enfim, o sotaque escroto dessa cachorra.
Claro que eu sou pisciana. Nenhum outro tipo de pessoa falaria tanto de ex
Vergonhosa.
primeiro e único, provavelmente!
Google: “why do dutch people like sweet caroline so much”
Jesus foi crucificado por falar a verdade.
rs