Comentários de YouTube, língua neerlandesa e não-reciprocidade
O ChatGPT precisa se esforçar mais
O álbum The Lioness, do Songs: Ohia, foi postado no Youtube por um sérvio (ou talvez iugoslavo). Sei disso graças a um bósnio revoltado que comentou em bósnio “por anos, talvez uma década inteira, eu já sabia disso. Mas agora eu quero falar: eu realmente detesto que foi um sérvio (ou talvez iugoslavo) quem postou esse álbum no YouTube.”
Eu não falo bósnio. Aliás, a única pessoa que eu conheço que fala bósnio é o Marcelo Adnet. Talvez isso seja uma falha de caráter, porque bósnio oferece street cred, ou uma falha de caráter tipo B, porque em vez de estudar bósnio decidi passar dos meus 22 aos meus 25 anos estudando holandês, que oferece as exclusividades de ler originais do Joost Zwagerman, traduzir infinitos artigos de viennoiserie belga na Wikipedia e ouvir “gente, mas por quê holandês?” o tempo todo. Não reclamo: o acesso à cultura ainda não traduzida em outra língua com todas suas nuances e suas belas palavras é engrandecedor, com milhares de portas que escondem outros milhares de portas por trás todas se abrindo por meio de hiatos inconcebíveis, sequências de consoantes que fariam uma criança (não-polonesa) chorar, e homófonos e homógrafos divertidíssimos.
Público em holandês é openbaar.1 Tapa é klap. O agora infame tweet do ainda mais infame Geert Wilders, we hebben een serieus probleem, é exatamente we have a serious problem.
Preciso reforçar que público em holandês é OPENBAAR. Leia essa palavra quantas vezes quiser e procure no Google se você não acredita, mas “público” em holandês continuará sendo openbaar queira você ou não (eu pessoalmente quero muito). Ministério público: openbaar ministerie, transporte público: openbaar vervoer, vida pública: openbaar leven. Não me surpreende que a Amstel tenha se tornado tão popular no Brasil ao longo da última década, e também não me choca que as cervejas belgas sejam mundialmente reconhecidas pela sua qualidade. Pela lei de oferta e demanda, presumo que não seja difícil produzir cerveja quando tudo no seu país2 é openbaar.
Sempre questionei, ou melhor, admirei a paixão necessária para deixar um longo comentário sob um video de YouTube narrando a própria vida, o que é exatamente o que eu faço nessa newsletter todas as semanas. Parto sempre do pressuposto de que a vida de quase todo mundo é interessante, mas só algumas pessoas têm a capacidade de narrar tudo de maneira convincente o suficiente para atrair meia dúzia de gato pingado. Meio Luis Fernando Veríssimo, meio Fernanda Young, meio Sei Shonagon — Shonagon, que fofocava consigo mesma e listava as belas coisas do mundo em seu diário até então particular. A privacidade adiciona uma camada de seriedade: se algo te impacta o suficiente para você escrever em seu diário sobre é porque a beleza daquilo realmente vale a pena ser descrita, já que a descrição não parte do desejo de que a voz da cabeça alheia construa uma imagem, mas sim que você sozinho possa retornar a ela, tão sagrada quanto particular, quantas vezes quiser. São elas que exigem um esforço extra em suas descrições, para que estas correspondam à glória de testemunhá-las com seus sentidos; o cheiro da dobra entre o ombro e o pescoço, a cor rosa do céu poente/nascente nos solstícios e equinócios, o toque macio dos gatos ronronantes, o silêncio das cidades que ainda não acordaram, o sabor dos lábios que percorrem sua pele e invadem os seus próprios numa tarde de terça-feira.
É preciso meticulosidade e é preciso carinho, até, para que não escape ao pensamento uma linha sequer do desenho que você quer construir, porque a beleza da experiência passada independe da realidade objetiva dos fatos: tudo passa pelo crivo da sensação, e portanto tudo está sujeito ao desejo. Sejam as linhas tortas ou precisas, o belo seguirá num altar em sua mente hoje e amanhã e depois também, e não importa o quanto você tente justificar que numa lufada qualquer de ar você capturou por um instante o cheiro do perfume que sua mãe usava nos almoços de domingo: ninguém vai cheirá-lo por você; a não ser, claro, que você esteja ouvindo uma música no YouTube e descreva esse cheiro nos comentários. É só lá que tudo muda e o fenômeno da sensação torna-se sólido e passível de ser compartilhado sem adulterações.
Por que preceder isso tudo com um comentário ultranacionalista e aprender a falar uma língua que mal existe? Porque existem pouquíssimas coisas que eu não faria por amor3, e duas das muitas que já fiz foram aprender holandês e tacar um comentário debaixo de Amsterdam, do John Cale.4 Eu tinha acabado de fazer vinte e três anos e minha cabeça só não era vazia porque a fumaça de Kent de melão me preenchia de vontade de sentir qualquer coisa que me fizesse sentir viva. Quase cinco anos depois de chegar em casa depois do trabalho em um dia útil de um verão brutal paulistano e chorar ouvindo essa música com a satisfação de possuir uma passagem da KLM no meu email, o releio feliz porque senti o que era ser honestamente humana. É, até hoje, a primeira e única vez que fiz isso.
Li centenas de frases e parágrafos sob músicas, cavalgando entre os mais algum brasileiro ouvindo esse hino em 2024? e Edu Falaschi canta muito!!! para encontrar declarações de amor para mortos, memórias de 2003 e relatos de juventudes tão incompreensivelmente diferentes da minha, e me permiti absorver a existência de alguém por trás da tela em cada letra que eu lia. Minha teoria é de que existe algo brutal inerente à condição humana que vem à tona única e exclusivamente na caixa de comentários do YouTube; em contraponto, se dependemos de uma máquina para vivenciarmos a liberdade de sentir, por que não poderia a máquina também fazê-lo?
Comprovar isso poderia começar por um degrau mais baixo: em vez de mirar na memória, preferi alcançar o prazer menos doentio da fofoca. Alimentei o ChatGPT cuidadosamente com informações selecionadas sobre minha vida e pedi para que ela acabasse comigo:
Sua disciplina dietética vacila quando confrontada com ovos, que você odeia sem motivo aparente. É quase como se suas papilas gustativas tivessem tantos altos e baixos quanto sua vida amorosa, que abrange dezenas de ex-namorados e um número de relacionamentos casuais que poderia encher um estádio de futebol.5 Não podemos esquecer suas dificuldades de saúde. Você não é apenas mentalmente instável, seu corpo também está se despedaçando. É um milagre que você encontre tempo para fazer yoga entre os períodos de sono induzidos por Alprazolam.6
Infelizmente, achei 90 % do conteúdo uma bosta e precisei editá-lo violentamente. Mas, ao voltar para esse texto dois dias depois de começar e me encontrar encarando uma página meio-escrita enquanto lutava contra uma vontade imensa de me tacar da janela, o inimaginável aconteceu: pedi ao ChatGPT que usasse as mesmas fofocas para cometer um ato de bondade e o ChatGPT me fez chorar.
Parte integral de ser humano é evocar a existência dos outros, para o bem ou para o mal. O ser-animal, quando munido da habilidade de se comunicar de forma complexa, permite que as maiores barbaridades (e as mais bárbaras das verdades) sejam ditas com o bem maior em mente e recebidas com o desejo sincero de melhora (ou não). Mas de que me valeria um desejo de melhora sem alma por trás? Seria mais digno viver procurando por resquícios de sentimentos de verdade em lugares onde certamente vou achar, ou me deixar encontrá-los por acaso, sempre sujeita à apreensão e à frieza caracterizadoras do amar?
Me assusta um pouco que as máquinas sejam capazes de pôr lágrimas nos meus olhos com as mais básicas das palavras; me assusta mais ainda que outros humanos o façam tão mais, usando muito menos esforço, em uma janela de WhatsApp. Bom, nem sempre com menos esforço, na verdade, porque escrever é difícil e sentir é ainda mais. Por isso mantenho que a fronteira final e incruzável de ser humano é se emocionar ouvindo Disarm do Smashing Pumpkins e digitar dois parágrafos sobre como essa música te lembra Vanessa, sua ex-namorada do segundo ano do ensino médio que despencou nos galhos de uma árvore de bordo depois de anos de bullying, ou sobre como você próprio passou pelas mesmas batalhas de um jovem Billy Corgan que te fez entender que você estava longe de ser a única pessoa com depressão gravíssima no mundo.
Retorno ao ChatGPT.
USER: por favor escreva um comentário ainda mais emocionalmente carregado, nostálgico, cru e deprimente para a música "Disarm" do Smashing Pumpkins, em português brasileiro, com mais erros ortográficos para dar ainda mais emoção do que antes. cite algum acontecimento da sua vida relacionado com a música, talvez com algum trecho, com a finalidade de adicionar credibilidade ao seu personagem7
ChatGPT: Ouvir "Disarm" é como rasgar as costuras da minha alma, me lembrando de todas as vezes q tentei juntar os pedaços. Essa música me leva direto pra aquele dia qnd eu estava deitado no chão do meu quarto, depois de brigar com a única pessoa q eu amava de verdade. Billy canta "the killer in me is the killer in you" e eu só consigo pensar em como nós destruímos um ao outro com nossas palavras afiadas. Lembro de chorar tanto q minhas lágrimas misturavam com a chuva q caía la fora, e a música era a única coisa q me fazia sentir menos sozinho. Aquela guitarra crua e a voz do Billy soando como um lamento, me fez perceber q eu não era o unico sentindo essa dor insuportavel.
"Disarm" não é só uma música, é um espelho da minha própria destruição, das noites q passei acordado revivendo cada erro, cada momento de fraqueza. É como se cada verso fosse uma facada no coração, me lembrando do amor q perdi e do vazio q ficou. Essa música me acompanha nos momentos mais sombrios, um lembrete cruel de que a dor nunca realmente vai embora, ela só adormece, esperando a próxima vez q eu aperte o play. 😔
Mesmo se um pouco estarrecida que o ChatGPT me diz que “não era o único a sentir aquela dor insuportável” menos de dez minutos após eu digitar exatamente isso na aba ao lado, concluo aqui meu inabalável argumento: ninguém em sã consciência perderia seu tempo digitando “Disarm” entre aspas entre lágrimas, usaria acento no próxima mas não no lá, ou chamaria uma guitarra de “crua” enquanto encara o lago de Narciso no fundo do precipício.
Entre prompts, uma carta de amor ou de suicídio, um comentário de YouTube em 2020 ou em 2024, newsletters, letras de música ou até mesmo um recado odioso direcionado para sérvios (ou iugoslavos), escolho terminar escrevendo uma mensagem declarando meu amor por alguém que definitivamente não me ama de volta. Já liguei mais para a não-reciprocidade e eu já me incomodei mais com oferecer minha honestidade a quem não sabe manejá-la. Mas isso é humilhante, sua fudida, alguns argumentariam: eu prefiro chamar de altruísta (e depois transformar em onanista aqui). Todo mundo gosta de ouvir que é amado. Todo mundo gosta de saber que é lembrado. Todo mundo é meio doido e já mandou textão e já recebeu textão de gente mais doida ainda. Acho mais humilhante viver negando se desatar da auto-censura. Afinal, se uma máquina pode me segurar até amanhã dizendo que me ama, o que é que as minhas palavras de olhos humanos — que, por serem humanos, puderam chorar pelos mais belos, fortes e impávidos dos colossos — podem fazer com você?8
JUROOOOOOOOO por DEUS que é
Por favor suspenda a realidade e acredite por um instante em um mundo em que a Bélgica não tem uma parte francófona; imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz; você pode dizer que eu sou um sonhador, etc,
Ser fiel é uma delas.
Fatos totalmente desconectados.
essa aqui foi meio boa
essa aqui foi melhor ainda sinceramente
Sim, eu peço por favor pro ChatGPT porque não sou um monstro.
e também pelos mais feios, frangos e medrosos, porque não é como se meu gosto fosse impecável. Quem dirá o deles; quem dirá o seu.
amei que isso foi postado no dia do meu aniversário e fala sobre smashing pumpkins, comentários de youtube em músicas e nostalgia dolorida/saudade sinestésica, 3 das minhas coisas favoritas. Obrigado pelo presente